domingo, 16 de setembro de 2012

Belos e sedutores

Morto há quase um mês, o diretor Tony Scott ficou mais conhecido por blackbusters como Chamas da Vingança (2004), com Denzel Washington, e Top Gun (1986), que consagrou Tom Cruise como galã. Teve uma profícua atuação como produtor ao lado de seu irmão mais famoso, Ridley Scott. Entre uma coisa, Scott realizou o sombrio e sensual Fome de Viver (1983), com David Bowie, Catherine Deneuve e Susan Sarandon.

Ambientado numa Nova York oitentista e dark – uma das primeiras cenas mostra os personagens principais num bar, vendo um show do Bauhaus, banda-ícone do gótico – o filme antecipou a atual onda vampiresco-sexy na qual surfaram True Blood, Crepúsculo e algumas outras franquias bem-sucedidas e, na minha opinião, chatíssimas.

Na trama Catherine é Miriam Blaylock, elegante e bela mulher da alta sociedade, que vive com o companheiro, John (Bowie) numa casa cheia de obras de arte. Ele é apenas um dos muitos amantes que ela vem colecionando ao longo dos séculos. Durante um tempo, esses companheiros podem, como Miriam, viver jovens por muito tempo, mas de uma hora para a outra envelhecem.



Quando John entra em desespero por perceber que sua vida está chegando ao fim, procura Sarah Roberts (Sarandon), médica especializada em envelhecimento que fica intrigada com o que vê, mas é incapaz de fazer algo para ajudá-lo. Num prazo de 24 horas o homem desaparece e a médica vai à sua casa. Acaba seduzida por Miriam numa das mais belas e interessantes cena de sexo – independente da orientação das pessoas envolvidas – do cinema contemporâneo.

À época de seu lançamento, Fome de Viver foi um fracasso. O curioso é que, meses antes, a escritora Anne Rice lançara Entrevista com o Vampiro, que logo foi um estrondoso sucesso. Alguns anos depois, o filme de Scott acabou atraindo fãs ardorosos. Com um roteiro bom, ainda que distante do genial, seu grande atrativo são os planos caprichados e uma fotografia interessante, mas aos olhos de hoje um tanto cafona. Os ótimos figurinos também ajudam a manter o filme vivo na memória.



No player: Blue Rondo a la Turk (Dave Brubeck)

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Estrada sem rumo

A busca – pela autoafirmação, pela identidade, por mudanças na vida ou por algo que se perdeu – é a questão central de todo road movie, desde os primeiros exemplares do gênero ou, retrocedendo um pouco mais, em seu gênero-pai, o western. Depois de décadas de especulações, vários tratamentos de roteiro e indagações outras, eis que estreia no Brasil a tão esperada adaptação de Walter Salles para On the Road, o supervalorizado clássico da literatura estradeira escrito por Jack Kerouac estreia no Brasil. Desde que foi exibido em Cannes, em maio passado, o filme tem suscitado críticas diversas e alguns (poucos, há que se reforçar) elogios. Um filme que, se buscava algo, não conseguiu dizer o que.

De Salles gosto de Central do Brasil (1998), mas nunca vi nada de muito original em sua obra, que não esconde a tendência de emular outros realizadores que ele admira, no caso mais óbvio, do alemão Wim Wenders. O próprio Central ecoa Alice nas Cidades (1974) , um dos mais pungentes deste diretor.


Referências, bem sabemos, são necessárias e sadias. Mas é triste perceber, neste último filme, que em mais de 20 anos de carreira Salles ainda não se encontrou. Seu On the Road é um triste rascunho de toda a potencialidade de um ícone de uma geração. Parece que foi tudo mal escolhido, do elenco ao partido estético que Salles imprime à sua obra, desde sempre.

Kristen Stewart não oferece nenhuma força à principal personagem feminina da história, Mary-Lou, com sua inexpressividade e sensualidade mentirosa. Em algumas cenas dá vontade de pular a parte em que ela aparece. Garret Hedlund, que faz Dean Moriarty, soa natural apenas quando está sem camisa ou em transe. O único que se salva é Sam Riley, o Sal Paradise. Viver Ian Curtis em Control (do fotógrafo e diretor Anton Corbjin), pode ter-lhe feito bem e sido um bom laboratório.

José Rivera, parceiro de Salles de longa data, tenta seguir o tom errático da narrativa do livro e erra a mão no roteiro. Há sequências arrastadas, que cansam o espectador sem oferecer-lhe nenhuma beleza. E tudo filmado e editado de forma quase asséptica. Até as cenas de sexo e a dança nos clubes de jazz que os jovens escritores frequentam são superlimpinhas e carentes de alma.

Nem a fotografia, em muitos momentos bonita como algumas fotos do Instagram, feita por Eric Gautier, que já havia trabalhado com Salles em Diários de Motocicleta (2003). Saí do cinema decepcionada. Imediatamente me peguei fazendo uma lista mental de pelo menos uns 15 road movies melhores que On the Road. Divido uma parte dela com vocês, a seguir.

Passageiro: Profissão Repórter (1975)
Michelangelo Antonioni propõe um questionamento dos mais caros aos filmes de estrada: o da própria identidade. A tentativa do jornalista David Locke (Jack Nicholson) de trocar de vida e de identidade com um negociante de armas durante uma viagem à Tunísia mostra o vazio e o tédio da condição humana. A empreitada de Locke, que atravessa a Europa em companhia de uma estudante que conhece em Barcelona (Maria Schneider) é mostrada pelo diretor sem concessões ao protagonista, que não tem como fugir de seu destino. Tudo isso com uma estética primorosa – o famoso plano-sequência em que acontece a troca é um dos mais famosos do cinema contemporâneo.

Cinema, Aspirina e Urubus (2003)
O encontro entre um sertanejo (João Miguel) e um alemão que deixou a pátria em meio à Segunda Guerra Mundial (Peter Ketnath) é um dos mais bonitos filmes de estrada brasileiros. Dirigido por Marcelo Gomes e Karim Ainouz e ambientado em várias cidades da Paraíba, “Cinema, Aspirina e Urubus” é poesia e vida puras.

Alice nas Cidades (1974)
Impossível não se comover com a história de Philipp (Rudiger Vogler), jornalista alemão que, numa viagem a Nova York, se vê sem passagem e tem de dormir no mesmo quarto de hotel que uma mãe e sua filha, a Alice do título. No dia seguinte a mãe desaparece e Philipp tem de cuidar da pequena, de volta à Alemanha, passando por estradas melancólicas – que Wenders sabia mostrar bem, à essa época – e situações das mais difíceis.

O Demônio das Onze Horas (1965)
Intenso, catártico e verborrágico, mostra a fuga amalucada de Marianne (Anna Karinna) e Ferdinand (Jean-Paul Belmondo) pelo Sul da França, depois que ele abandona a família e um homem aparece morto na casa dela. Um dos mais fantásticos filmes da Novelle Vague.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Questão de escolha

Outubro é um dos meses que espero com mais ardor, todos os anos, há pelo menos 14 anos. Acho que mais ainda que fevereiro, o mês do meu aniversário, ou dezembro, das festas de fim de ano, das quais tanto gosto. É quando começa a Mostra Internacional de Cinema, esse ano menor – 250 filmes – e um pouco mais triste, sem a presença de Leon Cakoff, seu criador e diretor, que morreu vítima de câncer uma semana antes da abertura do evento, como todos sabem.

E uma coisa que sempre penso quando compro meu pacote, faço minha programação e organizo minha vida para respirar cinema por 12 dias é como as outras escolhem o que ver, diante de tão larga e rica oferta. Eu me pauto por várias coisas. A primeira é a chance desses filmes de irem para o circuito comercial. Raramente escolho aqueles que estarão nas salas logo, a menos que seja algo que eu queira muito assistir.

A segunda são diretores. Quando são exibidos filmes de realizadores que aprecio, mesmo que a crítica tenha descido a lenha previamente, acabo apostando neles. Premiados em festivais seguem a lista, não por se tratar de eleição segura, mas justamente pelo contrário, por constituir uma chance de confronto. Quantos e quantos filmes ganhadores de Leões, Ursos e Palmas não são terríveis?

E,finalmente, vem o efeito surpresa. Não tenho medo de me arriscar: muitas das melhores películas que vi durante todos esses anos de Mostra foram totalmente livres de indicações de amigos, da crítica, de festivais, de nada. Li a sinopse, o país de origem e pronto.

Não acredito que esse método seja nada original: muitos dos meus amigos e conhecidos fazem isso. Tem aqueles que privilegiam alguns países ou continentes – eu mesma vejo muita coisa da América do Sul. Ou só frequentar salas de um determinado circuito, como também faço. A síntese de tudo isso é que cinéfilos são pessoas cheias de idiossincrasias. Como sonhar com a chegada de outubro, para se internar na sala escura e viver momentos incríveis.

domingo, 11 de setembro de 2011

Veneza é dele

Além de Alexandre Sokurov, que com Faust desbancou Roman Polanski e seu Carnage, e A Dangerous Method de David Cronemberg na categoria Melhor Filme, o grande vencedor do Festival de Veneza, que acabou ontem, foi o ator Michael Fassbender. O alemão levou o Leão de Ouro por seu delicado papel em Shame, do inglês Steve McQueen, que retrata o drama de Brandon, homem viciado em sexo e que tem uma complicada relação com a irmã caçula, Sissy (Carey Mulligan).

É a segunda parceria entre Fassbender e McQueen, dono de uma estética elegante, que tem muito a ver com seu trabalho como artista plástico. O belíssimo primeiro filme de ambos, Hunger, mostra os dias da greve de fome do ativista político irlandês Bob Sands. Falei dele ano passado no Duelos y Delícias.



Apesar do primor de sua atuação em Hunger – que não foi exibido por aqui, mas é fácil de se encontrar para baixar – Fassbender ficou conhecido por seus trabalhos em Bastardos Inglórios, em que ele faz um pequeno papel como um oficial nazista) e em X-Man - First Class, no qual vive o jovem Magneto. A Dangerous Method, que também concorreu em Veneza, mostra Fassbender como o psicanalista Carl Jung e o triângulo amoroso dele com a paciente Sabina Spielrein (Keira Knihtley) e o colega-rival Sigmund Freud (Viggo Mortensen).

Tanta versatilidade somada à premiação com certeza abrirá portas para o ator, que dá mostras de um trabalho consistente ao transitar por diferentes gêneros e estilos de direção com a mesma força interpretativa. Ainda não há previsão de estreia das novas películas de McQueen e Cronemberg por aqui, mas esperemos que cheguem até o final deste ano. Se não, a internet está aí para nos ajudar os mais afoitos, como eu.

sábado, 30 de julho de 2011

Sobre a cinefilia

“Provalvemente a cinefilia, paixão íntima, vinda de forma vital e polêmica, só é capaz de descobrir sua história através desta ironia: falar de si como de um outro, o que assegura um certo distanciamento ao mesmo tempo que evoca um desejo de proximidade. A proximidade peculiar da vontade de construir um relato, o distanciamento necessário à escrita de uma história”.
(Antoine de Baecque, em Cinefilia, lançado no Brasil pela Cosac Naify)

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Gainsbourg, vida louca

Quando se pensa em Serge Gainsboug muita gente lembra de seu talento e sua audácia como compositor e cantor, influenciado por nomes lendários como Jacques Brel e Charles Aznavour. Mas para a maior parte do mundo, o que o mitificou foi a fama de conquistador serial de lindas mulheres, como Brigitte Bardot, Juliette Grècco e Jane Birkin. Com muita poesia e belas metáforas, o diretor Joann Sfar conseguiu unir essas duas pontas e ainda mostrar outros aspectos da vida dele em Gainsbourg, vie héroïque, que aqui virou Gainsbourg, o Homem que amava as Mulheres, título que serve, justamente, para chamar a atenção de quem conhece apenas esse lado.

Generalização à parte, Sfar usa da fantasia, mola-mestra de sua atividade principal como cartunista, para aproximar o protagonista da audiência. Na infância, o pequeno Lucien (ele se tornaria Serge bem mais tarde, por sugestão do músico Boris Vian) aparece acompanhado por um boneco grande, redondo, dotado de dois pares de braços e pernas, mas com as suas feições. Já na juventude, o ser roliço – sua consciência? – torna-se uma criatura magra, alta, de nariz e orelhas grandes. Ele é interpretado por Doug Jones, ator especializado em dar vida a seres fantásticos como o fauno do já clássico filme de Guillhermo del Toro e Abrahan Sapian, o homem-peixe da franquia Hellboy.



Mesmo sendo muito parecido, Eric Elmosnino não emula totalmente o charme do "feio-bonito-interessante-barraqueiro" do original. O mesmo pode-se dizer de Laetitia Casta, sem dúvida uma das mulheres mais lindas do mundo, mas cuja Brigitte Bardot nada mais faz que irritar o público (os homens creio que não), durante os poucos minutos em que aparece na tela. Outras atrizes em cena são Anna Mouglalis – que antes de Greccò já havia sido Coco Chanel e Simone de Beauvoir no cinema – e a britânica Lucy Gordon como Jane, o grande amor do cantor. Gordon não viu a película pronta: cometeu suicídio quando o material estava em fase de pós-produção.

As interpretações não primorosas, entretanto, não estragam o filme, que retrata com charme o ambiente habitado por Serge, dos anos da ocupação alemã, na Segunda Guerra, até o fim de seus dias, no início dos anos 90. As cenas em que o pequeno Lucien espia uma modelo nua numa aula de desenho de observação, e a que ele vai a um café com a mesma moça, encontra uma velha cantora e canta cançonetas de cabaré, pouco adequadas à sua idade, são das mais divertidas.

Como cinebiografista, o novato Sfar surpreende, ainda que como diretor de atores ainda tenha um longo universo a aprender. O encanto das canções do irreverente Gainsbourg, que passou a vida defendendo a ideia de que era possível fazer música popular e de qualidade enquanto seu pai cobrava dedicação ao estudos clássicos, já valem o ingresso. Os fãs se encantarão, seguramente. Já quem conhece pouco sua vida e obra pode gostar de conhecer a verve e o gosto pela polêmica de um dos grandes nomes da música contemporânea.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Deneuve em dois tempos

Carol é uma jovem belga que mora com a irmã mais velha em Londres e trabalha num salão de beleza, como manicure. Sua vida se resume a trabalhar, sair para almoçar, voltar para casa e ficar trancada no quarto olhando para as paredes. A cada dia, vai se tornando mais esquizofrênica, alheia a tudo, até surtar de vez. Já a dona de casa Susane nunca trabalhou: herdou a fábrica de guarda-chuvas do pai, agora administrada pelo marido que pouco lhe dá atenção e tem um caso com a secretária. Essas duas mulheres são vividas com maestria por Catherine Deneuve, em Repulsa ao Sexo (Roman Polanski, 1964) e Potiche (François Ozon, 2010). Revi o primeiro e assisti o segundo há alguns dias.

Repulsion (ou Repulsa ao Sexo, outro dos nomes ridículos que os distribuidores brasileiros calcam) é, para mim, uma das obras mais perturbadoras de Roman Polanski, ainda que não tenha a mesma classe e o bom acabamento de O Bebê de Rosemary. O diretor busca referências em Él e El Ángel Exterminador, ambos de Luis Buñuel e que retratam personalidades esquizóides, para compor o perfil psicológico de Carol, mas com alguns cacoetes típicos de filmes de suspense.



Filmado em branco e preto, faz de imagens fortes, como o coelho assado que a irmã de Carol prepara, mas não o serve, e que vai apodrecendo ao longo do filme, (numa dada cena, sua cabeça é encontrada na bolsa da jovem); as rachaduras nas paredes e nas ruas que tornam-se cada vez maiores; a sujeira e a poeira do apartamento um contraponto visual à deterioração mental da personagem. A cena em que, já no auge da loucura, a moça passa por um corredor cheio de mãos que a tocam e, logo depois, comete dois assassinatos, lembra muito a atmosfera de Psicose.

Aos 22 anos, Deneuve encarna a repulsa do título original de forma surpreendente. E não é só ao sexo, é à vida. Ela evita olhar para as pessoas nas ruas; foge do pretendente apaixonado e lava a boca com sabão ao ser beijada por ele; joga apetrechos do amante da irmã no lixo; come apenas migalhas de biscoitos velhos e dorme ao fazer as unhas de suas clientes. Quando finalmente enlouquece, parece encontrar a redenção.

François Ozon é um dos diretores mais versáteis de sua geração e, talvez por isso, um dos mais achincalhados pela crítica. Para mim seu grande mérito sempre foi justamente o que torna sua cinematografia questionável: a capacidade de ir do romance cafona de época à comédia fantástica. Potiche é um filme simpático, com uma história divertida mas com um forte apelo político, por tratar dos direitos e do espaço das mulheres na sociedade. Ambientado nos anos 70, tem um roteiro que garante algumas risadas e a presença de uma Deneuve arrebatadora.



As câmeras estão a serviço da atriz. Susane, a "esposa troféu", que só cuida do marido (o ótimo Fabrice Lucchini) e corre no bosque de roupa Adidas e lenço no cabelo, vai se tornando cada vez mais forte e bela ao assumir a fábrica da família, cujos funcionários entram em greve, quando o marido sofre um infarto suspeito.

Para ajudá-la na ingrata tarefa de trabalhar depois de tanto tempo apenas como rainha do lar, ela procura o sindicalista e político Maurice Babin (Gerard Depardieu). Pouco a pouco sabe-se que eles foram amantes e que a mulher está longe de ser perfeita e fiel, o que é o mais engraçado e irônico do filme. A sequência em que Susane chega para uma reunião com os líderes da greve, elegantemente vestida e falando como se estivesse com suas amigas num chá, é das mais cômicas.

Além da condução por excelentes diretores, o único ponto em comum entre ambas películas é a protagonista, que mesmo cheia de plásticas e beirando os 70 anos, conserva muito do frescor expressivo de Sevèrine, a bela da tarde de Buñuel, ou da Carol de Polanski. O olhar de Susane quando parece que tudo vai dar errado remonta às cenas em que Carol, confusa, acorda depois de cochilar no trabalho. Um brilho que o tempo, as produções questionáveis ou os maus diretores não apagam.